terça-feira, 23 de outubro de 2007

Conto: “O PARTO DA ARANHA MORTA”

À Rosirene Gemael, Marilu Silveira, Dinah Ribas Pinheiro e Adélia Maria Lopes.

Yara Sarmento

No verão de 1971, quando havia ainda cinema em Antonina, elas foram assistir “O Leão no Inverno”, filme que trata, soberbamente, da sucessão do rei Henrique II da Inglaterra, e da luta de Ricardo Coração de Leão, um dos três filhos do monarca, pelo trono. Um elenco de feras debulhando-se em fantásticas interpretações.

Terminada a sessão, caminharam à casa de Dorothy e Maninho Pinto. Fizeram um lanche que tinha pão d'água saído da fornalha, o célebre pão “bundinha”, o mais delicioso de todos. O papo era sempre tão animado que sair da casa de Maninho ficava difícil. Antes da “hora aberta”, como Feliciano chama o badalar da meia noite, quando não se deve sair a céu descoberto, porque é a hora da circulação das almas, a moça e a amiga se despediram. Margareth emprestou a bicicleta. A amiga nos pedais, a moça no bagageiro, e assim atravessaram a cidade quase deserta.

A noite apresentava-se com um suave sopro atlântico. Voltaram a falar sobre o filme, destacando a interpretação de Katharine Hepburn, divina em sua Alienor de Aquitânia.
O vento farfalhava, delicadamente, as folhas das árvores da Praça Coronel Macedo. Ao fundo, na colina, a moça mais uma vez admirou a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, soberana sobre a cidade.

Na ladeira a caminho da Ponta da Pita, a bicicleta serpenteava gemendo no paralelepípedo. As duas, às gargalhadas, faziam contorções circenses para não se estatelarem no chão. Quando passaram pelo campo de futebol do 29 de maio - Honra e Glória - viram que a noite estava clara, era a performance da lua muçulmana.

No trecho do Clube Náutico, alguém ouvia Dalva de Oliveira cantando “Confession”. A moça doida por tangos, sentindo-se num palco portenho soltou a voz : “... hoi, despues de un año atroz, te vi passar. Me mordi pa no chamarte. Ivas linda como un sol. Se paravam pa mirarte...”.

Passando pela maternidade cruzaram com um jipe. O motorista, finíssimo, aproximou-se da bicicleta e berrou: “tão querendo batê cás deis, muquiranas”. A amiga, afastando a bicicleta da rua gritou: “vai-te às fezes do diabo, seu grande filho da puta” e seguiu pedalando. A moça, muda de medo, olhava para ver se o jipe estava voltando.

No bairro do Lacerda, onde moravam, desceram da bicicleta e fizeram a pé o caminho da rua à casa.O dito era de terra e bastante inclinado.
Sentiram o cheiro do mar dominar o ambiente. O canto de grilos e um encantador bailado de vagalumes acompanhavam o trajeto. Os morcegos não deixaram de participar do espetáculo com graciosos vôos rasantes.

O casarão estava imponente na luz mortiça. Pintada à meia boca pois não havia dinheiro para a necessária restauração, a casa tinha um aspecto fantasmagórico em seus mais de cem anos. Dizem que no casarão, o coronel Macedo recebeu D. Pedro II e comitiva, na visita do Imperador ao Paraná. Propriedade, à época, de Lourdes e Luiz Valente, a “casa grande", como elas a chamavam, era protagonista - talvez porque no imenso quintal estava o túmulo da família Macedo - de algumas das muitas arrepiantes estórias de assombração que os capelistas adoram contar e ouvir, ainda mais deliciados, se a noite é de tempestade, ou, de lua cheia. Subiram a escada. Na varanda da entrada deram de frente - empinada qual rainha - com uma aranha negra gigantesca (na verdade não era assim tão grande, mas, de qualquer modo assustadora). A moça paralisada gritou à amiga: “mate essa aranha, ela vai entrar na casa”. Depois de umas cinco tentativas - o bicho era mestre em esgueirar-se - o alvo foi atingido. Da massa aplastada - para espanto das duas - começaram a sair, com muita pressa, um sem número de pontos negros que se espalhavam em todas as direções. Aturdida e num ataque de completa imbecilidade, a moça perguntou: “o que é isso, são formigas?”. A amiga, paciente, explicou: “não são formigas, são arainhas, a bicha estava prenha e pronta pra parir”. Olharam-se estupefatas, e embaladas pelo primeiro golpe assassino, sapatearam sobre os pingos negros. Liquidados os mais lentos - os outros desapareceram - elas foram para a porta. Próximo ao degrau viram o que acharam ser a aranha macho. Armado, imenso, negro. A moça, arrepiada, gritou: “é o marido, o pai das crianças, e agora?” Decidiram que ele, também, devia morrer. A moça pensou: vai entrar na casa e proceder implacável vingança. A amiga saltou sobre o infeliz personagem.

Terminado o massacre, aberta a porta, a moça suando em bicas, sentou no sofá da sala, não sem antes inspecioná-lo. Muitos bichos de variados tipos e tamanhos freqüentavam o casarão. Acendeu um cigarro. Tremia tanto que o pito caiu no chão. Pegou o cigarro e seguiu fumando como se aquele fosse o último de sua vida.

Rememorando a cena, a moça se deu conta que haviam assassinado uma família. Que tinham trucidado a mãe na hora do parto; os recém-nascidos; o pai impotente, testemunha ocular e auditiva da brutal violência. A moça, super abatida, constatou como o ser humano também é predador. Percebeu - reduzida a pó de bosta - que a lei da selva impera sempre. Com voz sumida discorreu sobre o tema à amiga. A outra, prática, simplificou o enredo da ópera: “você sabe que esta casa é um zoológico. Matamos as aranhas porque são venenosas, é só!”, e cansada de tudo aquilo, foi para o quarto. A moça ficou ali mais um tempo, com cara de criminosa confessa, sem perdão. Na cama, cheia de culpa e consumida pelo remorso torturava-se com mil pensamentos. Tentou ler, andou pelo quarto, fumou à bessa, roeu todas as unhas, olhou a noite através da vidraça. Teve vontade de tomar um whisky, mas, não se atreveu a sair do quarto, tinha medo de fantasmas, e naquele momento o medo instalara-se com força letal. Dormiu quando o sol já batia na janela.

Muitos anos passaram. A vida mudou, como sempre. As coisas boas e más acontecidas na época estão quase esquecidas. Aquela noite, entretanto - para a moça - é presente. O filme; o papo com os amigos; o pão “bundinha” crocante com manteiga; a dança das folhas nas árvores; a igreja matriz; o ranger das rodas da bicicleta saltitando nas pedras do calçamento; o penetrante perfume do mar; o jipe azul; o espetáculo dos grilos, vagalumes e morcegos; a lua branca linda; o tango dilacerante; a casa projetada na luz amarelada; as aranhas negras; o quadro do extermínio; a dolorosa impossibilidade de reverter o fato consumado.

3 comentários:

valdogster disse...

Olá Yara e Beatriz!
Como estão vocês?
Estou visitando novamente o Blog e vejo que existem mais informações. Fico contente.
Até a próxima.
Abraços,
Val.

Anônimo disse...

Yara, li o conto e gostei muito. Ele é um tanto pertubador. Mesmo consciente que é "apenas uma aranha venenosa", incomoda o extermínio de uma familia. Vilões também envelhecem, os maus também criam crianças, brincam e riem com elas. Será que a aranha não seria uma boa moça, católica, generosa e cumpridora dos seus deveres? Será que ela era má apenas para aqueles que não são da mesma espécie?
Acho que esse conto é o retrato dos dias que vivemos. Somos maus e bons ao mesmo tempo, dependendo dos que nos cercam, dependendo da situação. Acima de tudo, proteger os nossos pares. E, se não são da mesma "espécie", que morram!Parabéns. O conto é genial.
beijo, Marisa

Marly Correia disse...

Bia. Adorei o conto da Yarinha. Ela me fez viajar no tempo, pois conheci os personagens, a "Casa Grande" e as ruas onde ela passou com a bicleta, fato que deu mais clima ainada ao conto. Transmita a ela os meus parabéns.
Abraços
Marly Correia